Monday, February 05, 2007

O Trote.

De Luciana Muniz.

Eu descia as escadas carregando alguns livros, estava organizando minha bagunça literária e faltavam apenas aqueles volumes para finalizar a tarefa. Ainda não tinha chegado à sala e escutei meu pai, já idoso, gritando ao telefone:
– Quem tá falando!?
Achei estranho, pois meu pai não é um tipo grosseiro, destes que naturalmente falam alto. Troquei um olhar interrogativo com minha mãe e me posicionei perto dele. Tão logo ele me viu, me passou o telefone para que eu falasse com quem quer que estivesse do outro lado da linha.
Ainda sem entender a situação, peguei o telefone e falei mecanicamente:
- Alô?
Jamais poderia imaginar ouvir as coisas que ouvi, vindas do outro lado da linha:
– Olha aqui dona, vou te explicar a situação! Teu irmão estava no bar e nóis entramo lá pá fazer um assalto, tu tá me entendendo? Daí o Renato quis dá uma de valentão e nóis teve que catá ele e trazê aqui pru quarto, tá certo? Agora os cara tão querendo dinheiro prá soltá ele...
Que situação absurda! Enfim havia entendido porque meu pai estava tão nervoso! E ele parecia estar falando a verdade, pois citou o nome do meu irmão!
Tentando conter o nervoso, respondi:
– O quê!? Dinheiro? Mas nós não temos dinheiro moço! Somos pobres!
– Num quero nem sabê! Se vocês não pagarem uma grana os cara vão dá uns tapa no teu irmão e eu vou pegar o meu carro e sai fora daqui, vou deixá tudo por conta dos cara, daí a vida do teu mano num vai valer nada, tu tá me entendendo?
– Estou sim... Calma... Não faça nada com o meu irmão...
– Eu quero dinheiro dona!
– Quem tá falando?
– Jorge!
– Então Jorge... Estamos numa situação difícil... Meus pais são idosos, meu irmão e eu estamos desempregados, ele toma remédios fortíssimos por conta da depressão, pelo amor de Deus solta ele!
– Dona, não me interessa saber a sua situação, ele atrapalhou o nosso negócio e nóis num vai ficar no prejuízo não!
Eu não sabia o que era pior, se era a situação absurda que havia se formado ou o sotaque carioca do seqüestrador! Algo me dizia que eu precisava blefar, foi exatamente o que eu fiz:
– Mas não temos dinheiro! Estamos no fim do mês, toda a aposentadoria do meu pai já foi gasta com remédios e despesas da casa! Vocês têm que extorquir de quem tem dinheiro e não os pobres!
– Escuta aqui porra! Quanto você consegue arrumar?
– Quanto? Se eu conseguir te arrumar R$ 100,00 será muito!
– Você tá mentindo!
Suspirei demoradamente como quem está em um beco sem saída:
- Pior que não estou... Gostaria muito de estar em uma situação melhor...
– Quanto tempo precisa para arrumar essa mixaria?
– Não sei... Meu pai precisa ir ao banco ver se consegue sacar tudo o que tiver na conta, daí aqui a gente completa com as moedinhas da bolsinha da minha mãe, eu devo ter uns R$ 10,00 na carteira...
Piscada básica para meu pai, tanto para acalmá-lo quanto para não negociar valores altos, ainda mais sem saber direito se aquilo tudo era verdade mesmo, afinal meu irmão não tinha levado o celular e não tínhamos como falar com ele! Que sufoco!
– Olha dona... Qual é teu nome?
Primeiro nome que veio na cabeça e sem titubear:
– Laura!
– Então Laura... Estou fazendo de tudo para amenizar a situação por aqui, mas não sei durante quanto tempo vou conseguir segurar os cara, daqui a pouco pego o meu carro e jogo tudo pro alto, daí o seu irmão já era!
– Não faça isso! Meu pai já saiu para ir ao Banco, fica aqui perto de casa! E outra... Quero falar com o meu irmão... Quero uma garantia de que ele está vivo, daí te entregamos o dinheiro onde você nos indicar.
– Não dá prá falar com o teu irmão agora, tu tá me entendendo? Os cara tão com ele preso no quarto, mas eu garanto que ele tá vivo!
Olhei séria para o meu pai e falei alto e com ar de alívio:
– Pronto! Meu pai acabou de chegar do banco! Onde te entregamos o dinheiro?
– Peraí Dona... Tem alguma coisa errada ai! Não deu tempo do seu pai ir até o banco e voltar...
Cara de pau total, sangue frio, irritação na voz e principalmente raciocínio rápido, eis os ingredientes:
– Claro que deu! Tem um Bradesco aqui do lado de casa, vamos fale logo onde te entregamos o dinheiro e vamos acabar logo com esta agonia!
– Não é possível que vocês não tenham dinheiro! Eu vou contar até três e se você não me contar a verdade eu vou embora daqui agora e largo o seu irmão na mão dos cara! Um... Dois... Três!
Postura firme e sem entrar no jogo psicológico do bandido, mas com uma boa dose de sofrimento na voz:
– Estou lhe dizendo a verdade! Gostaria de poder ter mais dinheiro para te oferecer e salvar a vida do meu irmão, mas não tenho! Vamos comer o pão que o diabo amassou até o começo do próximo mês, pois estamos te dando o restinho de dinheiro que possuímos, mas não tem problema, o que importa é ter meu irmão a salvo...
E me voltando de propósito para o meu pai, apreensivo ao meu lado:
- Pai! Veja aí na bolsinha da mãe se tem as moedinhas para completar os R$ 100,00!
– Laura...
– Jorge não desliga! Estamos providenciando os R$ 100,00, meu pai tá nervoso e não tá conseguindo contar direito as moedinhas...
– No que você trabalha dona?
– Não estou trabalhando... Estou desempregada há mais de sete meses! E o meu irmão também, vivemos da aposentadoria do meu pai...
– Mas o que você faz?
- Eu? Sou analista de sistemas...
– E não consegue emprego como analista de sistemas?
Ops! Sangue frio!! Avante!
– Na verdade era estagiária... Tava fazendo faculdade, mas tive que trancar porque a grana tava curta...
– Quantos anos o seu pai tem?
– 66.
– E a sua mãe?
– 60...
– Laura me escuta...
– Jorge! Me diga o que aconteceu! Já temos os R$ 100,00!!
– Me escuta! Não precisa mais me entregar o dinheiro...
Silêncio... E depois a dramatização:
– Não? O que aconteceu? Cadê o meu irmão?
– Fica calma... É um trote... Na verdade eu estou preso e liguei para um número qualquer para tentar conseguir uma grana...
Maldito!!
– Ah...
– Não vou adiante com isso, percebi que você está falando a verdade e que este dinheiro vai fazer muita falta para você e os seus pais e depois eu vou ficar com crise de consciência...
Presidiário com crise de consciência? Era só o que me faltava! Mas como eu também vou para o inferno, obviamente que por outros motivos:
– Com certeza! A gente tá numa situação muito difícil! A vida aqui fora é muito dura!
– Eu tô sabendo dona... Você tem alguma religião?
E o dito cujo era religioso também!? Confesso que nem mesmo nesta hora fui sincera:
– Não... Mas às vezes vou à missa...
– Então fica tranqüila que eu vou rezar para você e o seu irmão conseguirem um emprego e para que os seus pais melhorem de saúde, tu tá me entendendo?
Ha ha ha esta vai ficar na história! A minha situação está tão feia que até os bandidos estão rezando por mim!
– Obrigada... Eu também vou rezar para que você consiga sair daí da prisão e que consiga reconstruir a sua vida.
– Quantos anos você tem Laura?
Não, ele não está dando em cima de mim, era só o que me faltava! Respondi meio impaciente (e óbvio que menti a idade também, oras!):
– 28.
– Posso te ligar mais vezes? Mil desculpas pelo susto, mas espero ter conquistado uma amiga...
– Claro, não tem problema...
– Tá certo, só uma dica... Se algum mané te ligar falando essas patifarias desliga na cara, é tudo trote dos malandro daqui da prisão!
Acho que esta foi a frase mais sincera dele durante toda a conversa! Respondi já com ares de quem tem muito mais o que fazer:
– Tudo bem...
– Desculpa mais uma vez o susto! Semana que vem te ligo de novo para a gente conversar mais.
Vai esperando eu te atender...
– Tá bom...
– Thau.
– Thau.
Ufa! Nunca senti meu corpo tremer tanto! Mas depois que ele confessou a maracutaia não sabia dizer se fiquei com mais raiva da audácia dele, do meu irmão que saiu de casa e esqueceu o celular ou da falta de jogo de cintura do meu pai, que ouvindo um choro do outro lado da linha no início da ligação, foi logo falando o nome do meu irmão! Se não fossem estes pequenos detalhes não precisaríamos ter passado por este sufoco!
Mas de tudo isso fica uma lição: O diabo mora nos detalhes...


* Texto baseado em fatos reais, juro!

7 comments:

Lu Paiva said...

Bem-vindos ao pesadelo da realidade.
Esse é meu Brasil...

Unknown said...

Uau, Lu!

Que barra, hein?

Mas veja pelo lado bom: você pode ter arrumado um namorado!

Ué, só a Simony pode?

Beijos,
Alê

Feffers said...

Oi Lu!

Pois é, e tenho que lhe dizer que esse trote não é recente não, era já meio ´´manjada´´ tu tá me entendendo?

Agora que passou fica sempre a parte engraçada, mas na hora...hehe

Bjo!

Fe

Suzana Marion said...

Oi, Lu.

Até aqui na empresa já passei por isso, mas por sorte pude falar com os "sequestrados" por uma outra linha... E não é que o cara deu em cima de mim tb?rs
O pior foi quando outro cara ligou com esse papo e eu disse a ele que entendia sua situação na cadeia mas não podia atender porque estava trabalhando. O cara ligou outra vez muito bravo e falou um monte pra mim...
bjx

Li de Oliveira said...

Tenhos umas situações parecidas bem próximas. Fazer o que né? Que nos perdoem pelo conformismo, mas é a vida.... Boa sorte no novo espaço! Beijos.

Acerola das Neves said...

Na próxima ligação, finja estar com a mãe dele e que se ele não te pagar, vc mata a véia... rsrsrsrs é um troco pelo menos...
bjs
Tiago Abad

Nelson said...

Luciana, menina, desejo muito sucesso pra vc aqui neste novo blog!!! Botter.